O filme “Que Horas ela Volta?”, que tem como protagonista a
atriz Regina Casé, não deve ser visto apenas como uma crítica ao relacionamento
hierárquico entre patrão/ empregado, isso seria restringir o discurso e abrir uma
discussão que remete a um passado imerso em preconceitos e violência, que
talhou o caráter do nosso povo até fazê-lo se curvar a aceitar a sua condição
de cidadão de segunda classe, como se fosse à única realidade possível para
sobreviver neste mundo.
Claro, que isso merece uma discussão, mas ora proponho um novo olhar sobre a história de uma empregada doméstica que deixa a filha com os pais no nordeste para tentar uma vida melhor
na capital paulista.
Os anos passam e quando se dá conta ela vive há 20 anos na
casa dos patrões, onde é tratada com carinho e trabalha feliz. No entanto, as
vidas da empregada e dos patrões vão mudar com a chegada de Jéssica, a filha da
empregada, uma garota super descolada e inteligente, que chega a São Paulo para
prestar faculdade de Arquitetura na FAO.
Jéssica não sabe que a mãe mora na casa dos patrões e, ao
contrário da empregada, não tem o mesmo comportamento submisso.
É a partir da chegada de Jéssica no casarão que o filme se
torna interessante, pois apresenta uma nova realidade social, que hoje permite
aos menos favorecidos sonhar e realizar mudanças de vida, através dos estudos,
de tal forma que uma nova geração de crianças nascidas na pobreza e cujo
destino apontava para subempregos hoje ocupam as cadeiras em universidades ao
lado de muitos filhinhos de papai.
A chegada da menina e a forma natural como transita entre os
cômodos da casa dos patrões até o quarto da empregada cria uma série de
circunstâncias e revela o quanto cada um está preparado para quebrar as
barreiras que dividem e classificam os seres humanos por sua classe social.
A quebra dessa barreira é mais fácil no discurso do que na
prática.
De fato, não nascemos com as mesmas oportunidades, mas somos
feitos do mesmo pó de terra. E, assim
como a terra gira, nada impede que as oportunidades mudem de lugar e criem
novas circunstâncias favoráveis.
A linha que separa os cidadãos por causa das suas condições sociais
não é permanente, apenas uma ilusão criada a partir de um ponto de vista, de
uma época ou resultado de uma mente doente e mesquinha.
Uma mentira contada várias vezes se torna realidade. Uma
perda de consciência, resultado de décadas de preconceito e violência, faz com que
gerações de pessoas se sintam ainda hoje como cidadãos de segunda classe, não
merecedores do melhor pedaço do bolo.
Faz com que seres
humanos se contentem em comer os farelos, como se tivessem nascidos para serem
submissos e mandados.
É um conceito que está tão arraigado que os pobres coitados
não se sentem humilhados até que alguém mostre isso a eles. É uma aceitação do
inevitável.
Mas, felizmente, existe um processo de mudança, uma geração
de Jéssicas dispostas a superar anos de infeliz aceitação.
E, aos poucos, está aparecendo uma nova realidade. Por
exemplo, a nova Lei que ampliou os direitos trabalhistas dos empregados
domésticos, conhecida como PEC das Domésticas.
Dentre os direitos
conquistados, os empregados domésticos, grande maioria mulheres, agora possuem
uma profissão regulamentada, com jornada máxima de 44 horas semanais, pagamento
de hora extra, adicional noturno, seguro-desemprego e o FGTS.
Eu acredito que isso é um reconhecimento da classe, que
por vezes se sente discriminada e com
vergonha em dizer que é empregado doméstico, como se isso fosse um trabalho
menor.
A Lei corrige anos de abusos ao mostrar que trabalho é
trabalho. Não interessa se uma pessoa trabalha em uma casa de subúrbio ou no
Palácio da República. Se ela faz por merecer deve ter os seus direitos
trabalhistas garantidos.
Quem sabe um dia as pessoas percebam que subjugar não é
sinal de poder, mas de fraqueza de caráter.
Por ora, assista ao filme. Vale a pena.
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