Por Daniela Carvalho
Eu quero que você imagine. Eu estava andando na calçada,
aquele tipo de calçada que têm vários blocos de concreto, um na frente do
outro, separados por um pouquinho de grama.
Quando dei por mim comecei a caminhar, um pé em frente ao
outro, sincronizado, de bloco em bloco, e isso se tornou um objetivo a tal
ponto de eu passar na frente do lugar onde deveria parar e não ver.
Só depois de algum tempo – acho que foi quando encontrei
algo no caminho, uma árvore, pedra ou os blocos terminaram – que interrompi a
minha caminhada. Pra ser honesta, fui interrompida.
Para onde eu estava indo? O que aconteceria se algo não
estivesse no meio do meu caminho e me fizesse lembrar que não era por ali que
deveria seguir, mas deveria voltar e começar a caminhar de novo.
Agora é um novo cenário. Veja, eu não estou mais na calçada.
Estou caminhando por numa rua qualquer, sob o sol quente,
carregando algumas sacolas plásticas, dentro delas tem peixe, verdura, um
livro...
Sem eira e nem beira, com a mente vagando de um lugar para o
outro, até ver o reflexo de um poste na rua, um reflexo que formava uma linha
reta imaginária.
Eu comecei a caminhar por essa linha, um pé na frente do
outro, às vezes quase perdendo o equilíbrio, mas me esforçando muito para não
cair ou sair daquele caminho formado pelo reflexo.
Quanto tempo isso durou? Quantos lugares bonitos, pessoas
interessantes eu deixei de me relacionar enquanto observava o meu próprio pé seguindo
um caminho imaginário?
A luz que criou o reflexo do poste sobre a rua sumiria em
algumas horas, assim como o caminho refletido na rua, que testou o meu
equilíbrio e me fez esquecer tudo ao redor.
O que eu perdi? Nunca vou saber por que estava olhando para
baixo, para os meus pés, para um caminho imaginário, que não tem nenhuma
importância agora.
Por que escrevo tudo isso? Talvez para entender o que aconteceu
com alguns amigos que decidiram partir por conta própria. Como dizem por aí,
eles se suicidaram.
Eu conversei com uma amiga que chegou muito perto de fazer o
mesmo.
Na minha ignorância, falei que o suicídio era uma perda
total da esperança.
Ela me corrigiu e disse que quem se suicida, ao contrário do
que eu pensava, tem muita vontade de viver, mas está em surto.
No surto a pessoa já não sente nada: dor ou empatia pela dor
do outro.
Pensei:
Será que o suicida simplesmente segue um caminho imaginário,
como o reflexo do poste na rua e não percebe que numa questão de tempo tudo vai
mudar e voltar a ser como antes?
Será que o suicida segue um caminho reto, indo de um bloco
ao outro, e não percebe o momento de parar?
Na hora que a minha amiga explicou que, durante o surto, o suicida
não sente dor, eu me lembrei de uma música:
“Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem
fogo. Não vai dar mais pra chorar. Nem pra rir.…”.
Essa música que tem um ritmo tão gostoso terá sido feita em
um momento de surto?
Coisa da minha cabeça. Mas, na hora fez sentido.
E me fez refletir em quantas vezes eu achei engraçado ou não
prestei atenção em uma pessoa que precisava ser levada mais a sério.
A maior parte das pessoas está sem paciência para o outro.
Caminha na rua, absorta nos seus pensamentos (nem sempre
algo realmente importante. Pode ser qualquer coisa: fazer a unha, comprar
comida para o gato, escolher um novo tecido pra almofada, etc...) e torce para
não encontrar com um conhecido.
Quando encontra, pergunta se o outro está bem, por educação,
mas no fundo torcendo para que não queira se aproximar e falar sobre o que
realmente está sentindo.
É sempre melhor pensar que o outro está bem, mesmo quando vê
os seus olhos inchados, com olheiras e roupas desmazeladas.
Mesmo quando sabe que saiu de casa porque se separou do
marido ou ainda está sofrendo o luto pela morte de alguém querido.
- Oi, tudo bem?
- Tudo.
Isso basta para seguir em paz com a sua vida superficial.
Por que teria que ser diferente?
“Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem
fogo. Não vai dar mais pra chorar. Nem pra rir.…”.
Pode ser apenas uma música bonita, mas também pode ser
realmente um pedido de ajuda!
Eu não vejo o suicídio como uma morte mais terrível do que
qualquer outra. Como morreu?
- Enfarte, afogamento, caiu e bateu a cabeça, overdose,
câncer, suicídio.
Morreu, morreu. Como? Sinceramente, pouco importa como.
Talvez sirva apenas para quem adora fazer fofoca de mau
gosto. Só serve mesmo pra isso.
Contesto muito qualquer teoria religiosa que insiste em
colocar o suicida no rol das pessoas que vão “pagar pelo seu pecado”, neste
caso, unicamente, decidir morrer.
Não aceito isso. Acho que se não fosse para sermos livres e
fazermos as nossas escolhas, Deus não teria nos dado o livre arbítrio.
Enfim, colocar o suicida como pecador – junto com
estupradores, ladrões de farmácias populares, corruptos que desviam dinheiro da
merenda, religiosos falastrões, isso eu nunca vou aceitar.
Consigo entender que uma pessoa não queira mais viver.
Se existem tantas pessoas dispostas a viver sob todas as
circunstâncias porque não existiriam pessoas dispostas a morrer sob todas as
circunstâncias?
Eu fico mais muito incomodada quando penso que isso possa não
ter sido uma escolha dela e sim resultado de um surto psicótico, uma doença
mental, como explicou a minha amiga.
Pensar assim sempre dá um gosto amargo na boca, como se fosse
possível ter feito alguma coisa para evitar que o suicida fosse até o fim.
Prefiro pensar que tenha sido uma escolha. Viver ou Morrer?
Morrer.
Mas, vamos supor que a minha amiga esteja certa, além de ser
uma pessoa com mais experiência no assunto, eu a respeito acima de tudo.
Então, desde a nossa conversa, eu tenho pensando sobre isso.
No momento de crise que o país atravessa é comum
encontrarmos pessoas se queixando de falta de dinheiro, por se sentirem
perdidas e sem esperança, se todos que falam isso se suicidassem faltaria
espaço embaixo da terra.
Mas, vamos ser mais duros. Afinal, conseguimos ser grandes juízes
da vida alheia.
Quem mora na mesma casa com alguém que está desesperado, se
sente sozinho e vem sendo perseguido por agiotas violentos que desejam seu
corpo, não poderia prever ou até impedir o suicídio?
Conversar mais? Dar mais amor?
Se você também se faz essa pergunta, cuidado com a sua
conclusão. Não se apresse na busca pela verdade. Não julgue sem conhecimento de
causa.
Não entrem na casa dos outros, deitem na cama, comam em suas
mesas, sem terem sido convidados e saiam falando que estava tudo uma droga.
Isso é extremamente desrespeitoso.
Por causa de pensamentos iguais a esses, cometem-se uma grande
injustiça, que é culpar os familiares e os amigos do suicida.
Os familiares e amigos também têm seus problemas, suas dores
e feridas e, de uma hora para outra, se tornam o foco de rodinhas de
discussões, onde pessoas que mal conhecem demonstram serem PHDs em suas vidas.
Como se não bastassem sofrer pela perda de uma pessoa amada,
muitos familiares se sentem culpados e até envergonhados. Do que? Não sabem
exatamente, mas preferem se calar.
Se lhes perguntam: - Morreu, como?
Respondem: - Enfartou.
Por causa de julgamentos apressados e maldosos, de
preconceitos e condenações, o suicídio se tornou um tabu.
Há um silêncio sobre o assunto que só reflete o quanto nossa
sociedade está doente.
Se eu fosse médica, só pra começar o debate, receitaria doses
cavalares de respeito e afeto, por tempo
indeterminado.
E pra já.
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