terça-feira, 23 de junho de 2020

O que a distância fez de nós dois



- Já plantei uma árvore, escrevi um livro e tive dois filhos. E agora, Florêncio?

Soltei a frase com a segurança de quem envia um beijo pela janela do carro, com leveza e alegria, sem medo de ser mal interpretada.

Eu sabia que ele reconheceria a minha tentativa de resgatar Drummond e poetizar nosso encontro.
No passado, havíamos recitado essa poesia um para o outro, inúmeras vezes, sempre que estávamos certos de que as nossas vidas tinham acabado, quando na verdade estávamos apenas com uma terrível gripe ou um mal causado por coração partido.

Nossa amizade sempre caminhou de mãos dadas com a poesia e com José, de Drummond, que nos compreendia, acalentava e fazia perguntas por nós dois. Perguntas que nunca nos preocupamos em responder naquela época.

Mas, ao ouvir a frase poética, Florêncio não sorriu. Nem ao menos tentou.

O meu sorriso foi se encolhendo todo até sumir, meus olhos passaram a acompanhar os olhos dele e quando percebi estávamos os dois olhando para dentro de um copo de chope.

Minutos antes de entrar naquele bar, enquanto caminhava pela calçada, eu tinha pensado em tudo que gostaria de dizer a ele e ensaiado muitas formas de começar a nossa conversa.

Há 20 anos que não nos víamos, mas durante esse tempo, sempre que eu recordava o meu passado – a infância até os primeiros anos da juventude -, Florêncio estava comigo como uma referência de amizade sincera e ingênua.

De cabeça baixa, sentado na cadeira à minha frente, Florêncio passou a mexer a espuma do chope com o dedo mindinho fazendo alguns desenhos aleatórios.

A poesia, Drummond e eu logo nos sentimos deslocados naquele bar. Estávamos completamente perdidos.

Será que havia sido a minha roupa, o meu jeito de andar, o que eu disse ou deixei de dizer?

Enquanto eu tentava descobrir porque Florêncio se comportava daquele jeito, comecei a reparar que ele estava ficando careca.

Eu devo ser uma cretina por ter reparado nisso. Mas, pense bem, quando falta poesia o que resta é a triste realidade e coisas como a maldade do tempo.

E eu, por acaso, estou ficando mais bonita? Mais jovem? Bem, pelo menos, tenho cabelo, tantos que poderia dividir com Florêncio.

Lembro que esse pensamento me fez rir e fez mais. O meu sorriso fez Florêncio tirar os olhos do copo de chope e me olhar desconfiado.

Aproveitei o instante de atenção e pisquei pra ele. Porque fiz isso? Não sei. Coisas estranhas acontecem quando antigos amigos não conseguem superar o silêncio.  

Tudo durou um instante. Logo, Florêncio voltou a mexer no copo de chope, da direita para a esquerda e depois fazendo movimentos circulares.

Seria bom se o meu amigo estivesse presente naquele bar, não esse, mas aquele que tanto tempo atrás.
O silêncio me deu tempo para sentir culpa e cheguei a pensar que eu podia tê-lo assustado ao invocar Drummond, despertado nele uma emoção descontrolada que não estava sabendo como lidar.

Mas, dessa vez, sem a poesia, eu não estava com espírito para jogar outro beijo pela janela.

- Florêncio, desculpa meu amigo. Acho que estraguei tudo querendo poetizar nosso encontro. Ultimamente, está difícil disfarçar o medo que eu sinto.

Além de poesia, Florêncio sempre havia gostado de desvendar mistérios.

E eu percebi que isso não tinha mudado pela forma como de repente ele perdeu interesse na obra de arte que fazia na espuma do chope e passou a se concentrar em mim.

Mas, tudo bem. Se ele queria me ouvir contar um drama ao invés de recitar poesia, eu daria esse prazer a ele em nome da velha amizade.

- Não, não é medo da solidão, essa eu já conheço desde que... bem, deixa pra lá. Basta, dizer que a solidão me acompanha e não assusta.

As palavras pareciam escapar sem controle e conforme falava até os meus olhos foram ficando tristes.

Meu amigo parecia mais interessado do que nunca na minha vida despedaçada.

- Sim, Florêncio, eu sinto medo de ficar sozinha-sozinha.

- O que você disse? Ah! Não, não sinto medo apenas de ficar doente, de morrer em casa e ser encontrada em estado adiantado de decomposição, é mais do que isso.

- O que pode ser pior? O frio. Sentir que o frio dorme ao meu lado na cama. Eu não posso me mexer à noite porque se faço isso, eu congelo. Estar sozinha é sentir frio.

Estávamos no oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse a solução geral.

A cada gole, a minha mente foi ficando mais clara e eu sentia que a solução geral estava próxima. Achei que o momento merecia uma poesia.

Eu queria recitar Drummond: "Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra/ ou teu melhor silêncio/ Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos".

Mas, Drummond não conseguia perdoar a desfeita do meu “amigo”.

Pensei em convidar Saramago para nossa mesa: “Não direi: Que o silêncio me sufoca e amordaça/ Calado estou, calado ficarei/ Pois que a língua que falo é de outra raça”.

Outra raça, outra língua... 20 anos se impôs entre nós. Florêncio seria lembrado para sempre como um drama sem poesia?    

Então, no último gole eu ainda estava em busca de uma solução geral, mas lembrei de Raul Seixas. A loucura dele mexeu comigo e me deu força, não me contive:

“Eu não quero viver gastando palavras/ Pra quem não me ouve jamais!/ Eu não quero dúvidas de quem não me aceita, não mais!/ Eu não quero o silêncio/ De quem não me preenche com palavras de paz”.

Florêncio? Não sei. Na companhia de Raul fui embora dali sem olhar para trás.

2 comentários:

  1. ...um amigo...também tenho um amigo...um amigo querido que eu amo demais;não nos vemos há quase 40 anos...sim, 40!...e sinto que nossa amizade cresce a cada dia, nossa sintonia sempre foi e ainda é enorme, apesar da distância e dos motivos que nos impedem de nos vermos...às vezes, uma música, um poema que nos faça recordar nossa época da faculdade é suficiente para matar um pouquinho dessa saudade que insiste em instalar-se em nosso peito...e aí?...já plantei árvore mas livro não pretendo escrever (penso que essa falha eu já compensei nos filhos...engravidei quatro vezes...), mas quando a saudade aperta, mando sempre essa mesma mensagem "...e aí, amigo? me manda uma fumacinha para eu ter a certeza que ainda vives..."...confesso que fico aliviada quando chegam algumas linhas...e ele faz o mesmo...assim seguimos durante todos esses anos, até um dia, talvez podermos de fato nos encontrar como antes...parabéns pela postagem...sua escrita me toca demais...beijo enorme...Néria.

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    1. Néria, tudo jóia? Fico tão feliz ao receber suas mensagens..., obrigada! Ter um amigo de verdade é tão raro, você é muito sortuda por isso. Acredito que amizade verdade nada é capaz de abalar, nem mesmo o tempo e a distância. Espero que você reencontre o seu amigo em breve! Um super beijo

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